Toda a arrogância e soberba do fascismo social brasileiro, paulistano e rico vieram à tona na última semana: sem rodeios, sem máscaras, alto e bom som: “Quer mais degradação [ambiental] do que o emporcalhamento da Biblioteca Municipal Mário de Andrade? Ou gente que dorme, urina e lava roupa em plena praça Ramos de Azevedo, nas barbas do Carlos Gomes?”, esta frase fascista, não foi pronunciada em embate público acalorado entre cidadãos ou em recinto fechado, reduto dos responsáveis pelo apartheid social da classe A nos Jardins da capital. Antes, foi uma frase escrita ipsis literis por um empresário rico e influente no editorial de um jornal de circulação nacional no Brasil.
O empresário, Antônio Ermírio de Moraes, o jornal, a Folha de S. Paulo e a louvação era à “Lei Cidade Limpa” do atual governo tucano. O empresário inicia seu texto elogiando o governo municipal pela implementação de uma lei que “visa disciplinar o uso de anúncios”. Contudo, isso é apenas a primeira linha do artigo, nas seguintes, o Sr. Antônio Ermírio mostra o intuito central do editorial: expressar seu “inconformismo com a inaceitável sujeirada que tomou conta da cidade”. E até aí eu também concordaria, se não fosse o entendimento equivocado e preconceituoso do empresário quanto ao que “suja” a cidade.
Para o empresário higienista, as pessoas não sujam a cidade poluindo o ar com substâncias cancerígenas como a Votorantim Cimentos, mas poluem e “emporcalham” (ele utiliza esse termo) a cidade com sua presença nos logradouros públicos e em sua míope e eugenista visão, nada mais prático que utilizar os “dispositivos” da lei em vigor para “limpar” a cidade dos indesejáveis moradores de rua.
Ora bem, não somos ingênuos e sabemos que tais concepções não são nem recentes nem incomuns numa cidade onde os fossos sociais são responsáveis por conceitos como o de “brasilinização” (criado por Ulrich Beck), que se refere justamente às diferenças abissais que, o capitalismo organizado, aprofunda cada vez mais nas relações que situam em lados opostos os 20% mais pobres que ganham 2,4% da renda brasileira e os outros 20% mais ricos que concentram 63,2% da mesma renda nacional. Economicamente isso fica bastante explícito em termos de injustiça social: provavelmente o grupo que “emporcalha” a cidade não chegue a fazer parte da média de cerca de 40 milhões de pessoas que vivem com menos de US$2 ao dia e dos 14,6 milhões que vivem com menos de US$1 ao dia.
Evidente que como principal figurão de um dos 10 maiores conglomerados globais do setor de cimentos, o empresário editorialista não vê problema em chamar de “sujeira urbana”, ao lado de placas publicitárias, lixo e urina, a população que paga na pele, da maneira mais violenta e visível, as conseqüências da escandalosa e desigual riqueza que ele, e seu grupo familiar, concentram.
Ou seja, para o rico e poderoso empresário, o que o incomoda “há anos” não é sobrevoar habitações precárias de pessoas que são amontoadas em qualquer lugar da cidade e são tratadas como animais, sofrendo toda a sorte de humilhações cotidianas, chegando ao cúmulo do extermínio físico, como na chacina perpetrada em agosto de 2004 com 8 vítimas fatais, que continua impune. Não o incomoda tampouco, que sua vasta e diversificada fortuna sirva para a consolidação do fascismo social na cidade de São Paulo e divida a cartografia urbana em zonas praticamente estanques, se não fosse o uso instrumental da pobreza. O que realmente incomoda o grande empresário é que pessoas estejam ali, a “banhar-se”, nas barbas do Carlos Gomes, provocando sujeira numa cidade, que se não bastasse o campo minado em termos de desigualdade social, ainda deve chamar para si, de acordo, com o último e prepotente parágrafo do Sr. Antônio Ermírio, a hegemonia econômica do País.
O fascismo social e higienista na prática: limpando a cidade e removendo indesejáveis
Aparato do Estado a serviço da "limpeza" desejada pela alta burguesia paulistana
De acordo com o dicionário Aurélio, que não tem um verbete para a palavra higienismo, limpeza, significa desde o que tem “qualidade de limpo e de asseado”, passando pela idéia de “correção, decência, pureza” até mostrar que a palavra poderia ser sinônimo de “desaparecimento total de qualquer coisa”, até mesmo uma “coisa bem-feita, bem-acabada, caprichada”. Sendo assim, o verbete limpeza cumpre também o papel da omissão de higienismo, uma vez que tal palavra, na bibliografia especializada poderia ser uma forma de “correção” em busca de um ideal de “pureza” que fizesse “desaparecer completamente” a característica de indesejáveis em certos indivíduos. No começo do século XX, por exemplo, a palavra higienismo acompanhava o projeto eugenista de certos sanitaristas que pretendiam trabalhar na criação de uma “raça pura”, de indivíduos bem-dotados que favorecessem os fatores sociais da tendência seletiva, ou em outras palavras, eugenia aqui era algo como vamos ajudar a “que vença o mais forte”.
Dessa forma, desde cedo, o “mais forte” já contava com uma ajudinha social, especializada em construir uma idéia moral de força e virtude ligada à limpeza, à ordem e outras palavras, que faziam parte de qualquer discurso nazista ou fascista que se julgasse sério. Assim, o biológico, foi sendo interpretado social e politicamente, com explícitos interesses econômicos. Herança do colonialismo, o discurso da ordem e da higiene foi se arrogando o poder de legislar sobre todos os mundos da vida, foi compartimentalizando compreensões acerca de nós mesmos, cerceando liberdades, incutindo a idéia de inferioridade em milhões e milhões de pessoas em todo o mundo.
Discurso poderoso que rapidamente percebeu o trunfo que tinha nas mãos: a padronização dos comportamentos através do mundo, o jugo do “homem branco” civilizador e da religião moral atuaram como armas poderosas a favor de uma conjuntura onde o sistema econômico emergia como a faceta mais importante contra o inferior que era preso, segregado e “limpado” dos espaços públicos. Esse indivíduo inferior, ainda hoje, é “encarnado”, pela moral hegemônica, nas pessoas negras, mulheres, pobres, indígenas, deficientes, loucas, moradoras de rua, gays, lésbicas e todas aquelas que não se enquadram às imposições do sistema econômico e, por isso, são designados como descartáveis.
Os instrumentos que utilizaram foram vários para sedimentar esse poderio, dos discursos higienistas, passando pelos campos de concentração europeus e as guerras de libertação nacional na África, lançou-se mão da violência, não apenas simbólica, mas que em muitos casos, culminava em extermínio total.
E aí é fácil entender porque atualmente limpeza e extermínio andam de mãos dadas. Vamos voltar um pouquinho, para entender como isso acontece hoje em São Paulo : já faz algum tempo, um sociólogo português, também bastante conhecido no Brasil, Boaventura de Sousa Santos, cunhou um termo, para representar, o que para ele contribuía sobremaneira para o crescimento estrutural da exclusão social: o fascismo social, que ele acabou definindo como diferente daquele fascismo dos anos trinta e quarenta, já que não acontece mais como um regime político mas sim sob a forma de um regime social. Para ele, o fascismo social também não sacrifica a democracia perante as exigências do capitalismo, mas fomenta esta última, até que não seja necessário, nem conveniente, sacrificá-la para promover o capitalismo.
Assim, nessa democracia de baixa intensidade, onde é possível aliar e utilizar a implementação de uma lei de limpeza urbana para aplicá-la a seres humanos é possível vermos (e lermos) opiniões, que não diferentes dos idos anos trinta, buscam arregimentar por meio da perspectiva econômica e da limpeza-extermínio (a xenófoba conclamação da cidade paulistana como responsável pelo progresso econômico e social do país) a simpatia daqueles que acriticamente se julgam superiores a tantos outros que sofrem as mazelas das desigualdades incansavelmente construídas por ultraempresários.
Para Boaventura, o fascismo social na verdade acontece na forma de vários fascismos, não apenas coordenados pelo Estado (fascismo estatal) mas também pelo próprio sistema financeiro (o fascismo financeiro dos grandes grupos econômicos), pelo fascismo da insegurança (podíamos pensar nas estratégias do governo americano que congrega em diversos níveis, várias formas de fascismo social, mas também nas medidas truculentas e racistas do governo carioca no Complexo do Alemão), o fascismo territorial (em São Paulo podemos ver como a segregação espacial é gritante e pouco democrática, basta olharmos para os condomínios fechados e as vilas de casas residenciais do Itaim e da Vila Olímpia cercada de seguranças particulares e vigilância eletrônica 24 horas por dia).
Contudo, o texto do Sr. António Ermírio de Moraes congrega, além de aspectos do fascismo territorial (quem pode estar na Praça Ramos de Azevedo), econômico e estatal, um novo aspecto: o fascismo-higienista.
A nova fase de aprofundamento da exclusão social, inaugurada pelo editorial do Sr. António Ermírio não diz respeito mais ao espólio do capital, uma vez, que como vimos essa população não tem acesso nem ao dólar diário para a sobrevivência, quanto mais a um leito do Hospital da Beneficência Portuguesa, mas também não diz respeito somente à segregação espacial, ao fascismo da insegurança incutida sabidamente na cabeça dos cidadãos, que já viam os moradores de rua como uma população “perigosa”.
O novo aspecto tratado no artigo que chamo de fascismo higienista traz consigo a idéia de que a ordem e a limpeza devem prevalecer para além da vida humana, fator de dignidade da população que vive nas ruas. Ao negar a essa população não só a possibilidade de ser reconhecida por suas expectativas de participar do contrato social, o fascismo higienista lhes nega a própria humanidade, fazendo com que assim, esta população possa estar a mercê da limpeza urbana, recolhidos pela Vega Sopave e despejados num lixão ou num aterro sanitário qualquer, apenas porque sua imagem não incomoda por estarem reivindicando direitos, justiça social ou lutando contra a iniqüidade e pela parte que lhes é devida no contrato social, mas apenas por estarem “sujando” a cidade com sua presença maltrapilha.
Constatação cruel e dolorosa, esse fascismo higienista, que trata agora como lixo quem foi excluído das promessas da modernidade neoliberal é uma forma de negar humanidade a quem criativamente se reinventa nas ruas colocando em marcha sonhos e expectativas apesar de todas as evidências contrárias.
Mas, talvez, essa constatação não seja dolorosa apenas para quem conhece a população de rua e sabe o quanto que lhe é devido nessa partilha indecorosa do bolo capitalista. Talvez mais dolorosa deva ser a constatação para o empresário, poderoso e fascista que toma consciência de sua própria inumanidade: ao ver-se confrontado com pessoas, que apesar de terem sido espoliadas de tudo, têm a dignidade de se levantarem e se limparem num gesto heróico de dignidade ele possa perceber quão ele é mesquinho e inumano. Uma vez que, confortavelmente em uma de suas mansões, se dá ao luxo de escrever que a cidade deve se livrar de pessoas, como quem se livra de cartazes.
Apesar dessas formas agressivas e estruturadas do fascismo, sabemos que o lugar onde o nosso caminhar encontrará liberdade, justiça e democracia não existe e que somos nós que teremos que criar. A população de rua, empresário, está à porta, atenta e organizada. Será necessário mais que o extermínio e a morte para calar esses milhões de mulheres e homens que teimam em dizer: estamos aqui, somos teu fruto! E escancaram que ou as coisas mudam ou será necessário mais que água, limpeza e morte para manter o sistema que o senhor diária e desesperadamente luta para remendar, com idéias de ordem e bajulações duplamente intencionadas, porque ruindo ele já está.
Rose Barboza é psicóloga e mestranda em Sociologia na Universidade de Coimbra/Portugal
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