A sociologia constitui um projeto intelectual tenso e
contraditório. Para alguns ela representa uma poderosa arma a serviço dos
interesses dominantes, para outros ela é a expressão teórica dos movimentos
revolucionários.
A sua posição é notavelmente contraditória. De um
lado, foi proscrita de inúmeros centros de ensino. Foi fustigada, em passado
recente, nas universidades brasileiras, congelada pelos governos militares
argentino, chileno e outros do gênero. Em 1968, os coronéis gregos acusavam-na
de ser disfarce do marxismo e teoria da revolução. Enquanto isso, os estudantes
de Paris escreviam nos muros da Sorbone que “não teríamos mais problemas quando
o último sociólogo fosse estrangulado com as tripas do último burocrata”.
Como compreender as avaliações tão diferentes
dirigidas com relação a esta ciência? Para esclarecer esta questão, torna-se
necessário conhecer, ainda que de forma bastante geral e com algumas omissões,
um pouco de sua história. Isto me leva a situar a sociologia – este conjunto de
conceitos, de técnicas e de métodos de investigação produzidos para explicar a
vida social – no contexto histórico que possibilitou o seu surgimento, formação
e desenvolvimento.
Este livro parte do princípio de que a sociologia é o
resultado de uma tentativa de compreensão de situações sociais radicalmente
novas, criadas pela então nascente sociedade capitalista. A trajetória desta
ciência tem sido uma constante tentativa de dialogar com a civilização
capitalista, em suas diferentes fases.
Na verdade, a sociologia, desde o seu início, sempre
foi algo mais do que uma mera tentativa de reflexão sobre a sociedade moderna.
Suas explicações sempre contiveram intenções práticas, um forte desejo de
interferir no rumo desta civilização. Se o pensamento científico sempre guarda
uma correspondência com a vida social, na sociologia esta influência é
particularmente marcante. Os interesses econômicos e políticos dos grupos e das
classes sociais, que na sociedade capitalista apresentam-se de forma
divergente, influenciam profundamente a elaboração do pensamento sociológico.
Procuro apresentar, em termos de debate, a dimensão
política da sociologia, a natureza e as conseqüências de sem envolvimento nos embates
entre os grupos e as classes sociais e refletir em que medida os conceitos e as
teorias produzidos pelos sociólogos contribuem para manter ou alterar as
relações de poder existentes na sociedade.
O SURGIMENTO
Podemos entender a sociologia como uma das
manifestações do pensamento moderno. A evolução do pensamento científico, que
vinha se constituindo desde Copérnico, passa a cobrir, com a sociologia, uma
nova área do conhecimento ainda não incorporada ao saber científico, ou seja, o
mundo social. Surge posteriormente à constituição das ciências naturais e de
diversas ciências sociais.
A sua formação constitui um acontecimento complexo
para o qual concorrem uma constelação de circunstâncias, históricas e
intelectuais, e determinadas intenções práticas. O seu surgimento ocorre num
contexto histórico específico, que coincide com os derradeiros momentos da
sociedade feudal e da consolidação da civilização capitalista. A sua criação
não é obra de um único filósofo ou cientista, mas representa o resultado da
elaboração de um conjunto de pensadores que se empenharam em compreender as
novas situações de existência que estavam em curso.
O século XVIII constitui um marco importante para a
história do pensamento ocidental e para o surgimento da sociologia. As transformações
econômicas, políticas e culturais que se aceleram a partir dessa época
colocarão problemas inéditos para os homens que experimentavam as mudanças que
ocorriam no ocidente europeu. A dupla revolução que este século testemunha – a
industrial e a francesa – constituía os dois lados de um mesmo processo, qual
seja, a instalação definitiva da sociedade capitalista. A palavra sociologia
apareceria somente um século depois, por volta de 1830, mas são os
acontecimentos desencadeados pela dupla revolução que a precipitam a tornam
possível.
Não constitui objetivo desta parte do trabalho
proceder a uma análise destas duas revoluções, mas apenas estabelecer algumas
relações que elas possuem com a formação da sociologia. A revolução industrial
significou algo mais do que a introdução da máquina a vapor e dos sucessivos
aperfeiçoamentos dos métodos produtivos. Ela representou o triunfo da indústria
capitalista, capitaneada pelo empresário capitalista que foi pouco a pouco
concentrando as máquinas, as terras e as ferramentas sob seu controle,
convertendo grandes massas humanas em simples trabalhadores desprovidos.
Cada avanço com relação à consolidação da sociedade
capitalista representava a desintegração. O solapamento de costumes e
instituições até então existentes e a introdução de novas formas de organizar a
vida social. A utilização da máquina na produção não apenas destruiu o artesão
independente, que possuía um pequeno pedaço de terra, cultivado nos seus
momentos livres. Este foi também submetido a uma severa disciplina, a novas
formas de conduta e de relações de trabalho, completamente diferentes das
vividas anteriormente por ele.
Num período de oitenta anos, ou seja, entre 1780 e 1860, a Inglaterra havia
mudado de forma marcante a sua fisionomia. País com pequenas cidades, com uma
população rural dispersa, passou a comportar enormes cidades, nas quais se
concentravam suas nascentes indústrias, que espalhavam produtos para o mundo
inteiro. Tais modificações não poderiam deixar de produzir novas realidades para
os homens dessa época. A formação de uma sociedade que se industrializava e
urbanizava em ritmo crescente implicava a reordenação da sociedade rural, a
destruição da servidão, o desmantelamento da família patriarcal etc. A
transformação da atividade artesanal em manufatureira e, por último, em
atividade fabril, desencadeou uma maciça emigração do campo para a cidade,
assim como engajou mulheres e crianças em jornadas de trabalho de pelo menos
doze horas, sem férias e feriados, ganhando um salário de subsistência. Em
alguns setores da indústria inglesa, mais da metade dos trabalhadores era
constituída por mulheres e crianças, que ganhavam salários inferiores dos
homens.
A desaparição dos pequenos proprietários rurais, dos
artesãos independentes, a imposição de prolongadas horas de trabalho etc,
tiveram um efeito traumático sobre milhões de seres humanos ao modificar
radicalmente suas formas habituais de vida. Estas transformações, que possuíam
um sabor de cataclisma, faziam-se mais visíveis nas cidades industriais, local
para onde convergiam todas estas modificações e explodiam suas conseqüências.
Estas cidades passavam por um vertiginoso crescimento demográfico, sem possuir,
no entanto, uma estrutura de moradias, de serviços sanitários, de saúde, capaz de
acolher a população que se deslocava do campo. Manchester, que constitui um
ponto de referência indicativo desses tempos, por volta do início do século XIX
era habitada por setenta mil habitantes; cinqüenta anos depois, possuía
trezentas mil pessoas. As conseqüências da rápida industrialização e
urbanização levadas a cabo pelo sistema capitalista foram tão visíveis quanto
trágicas: aumento assustador da prostituição, do suicídio, do alcoolismo, do
infanticídio, da criminalidade, da violência, de surtos de epidemia de tifo e
cólera que dizimaram parte da população etc. É evidente que a situação de
miséria também atingia o campo, principalmente os trabalhadores assalariados,
mas o seu epicentro ficava, sem dúvida, nas cidades industriais.
Um dos fatos de maior importância relacionados coma
revolução industrial é sem dúvida o aparecimento do proletariado e o papel
histórico que ele desempenharia na sociedade capitalista. Os efeitos
catastróficos que esta revolução acarretava para a classe trabalhadora
levaram-na a negar suas condições de vida. As manifestações de revolta dos
trabalhadores atravessaram diversas fases, como a destruição das máquinas, atos
de sabotagem e explosão de algumas oficinas, roubos e crimes, evoluindo para a
criação de associações livres, formação de sindicatos, etc. A conseqüência
desta crescente organização foi a de que os “pobres” deixaram de se conformar
com os “ricos”; mas uma classe específica, e classe operária, com consciência
de seus interesses, começava a organizar-se para enfrentar os proprietários dos
instrumentos de trabalho. Nesta trajetória, iam produzindo seus jornais, sua
própria literatura, procedendo a uma crítica da sociedade capitalista e
inclinando-se para o socialismo como alternativa de mudança.
QUAL A
IMPORTÂNCIA DESSES ACONTECIMENTOS PARA A SOCIOLOGIA?
O que merece ser salientado é que a profundidade das
transformações em curso colocava a sociedade num plano de análise, ou seja,
esta passava a se constituir em “problema”, em “objeto” que deveria ser
investigado. Os pensadores ingleses que testemunhavam estas transformações e
com elas se preocupavam não eram, no entanto, homens de ciência ou sociólogos
que viviam desta profissão. Eram antes de tudo homens voltados para a ação, que
desejavam introduzir determinadas modificações na sociedade. Participavam
ativamente dos debates ideológicos em que se envolviam as correntes liberais,
conservadoras e socialistas. Eles não desejavam produzir um mero conhecimento
sobre as novas condições de vida geradas pela revolução industrial, mas
procuravam extrair dele orientações para a ação, tanto para manter, como para
reformar ou modificar radicalmente a sociedade de seu tempo. Tal fato significa
que os precursores da sociologia foram recrutados entre militantes políticos,
entre indivíduos que participavam e se envolviam profundamente com os problemas
de suas sociedades.
Pensadores como Owen (1771-1858), William Thompson
(1775-1833), Jeremy Bentham (1748-1832), só para citar alguns daquele momento
histórico, podiam discordar entre si ao julgarem as novas condições de vida
provocadas pela revolução industrial e as modificações que deveriam ser
realizadas na nascente sociedade industrial, mas todos eles concordavam que ela
produzira fenômenos inteiramente novos que mereciam ser analisados. O que eles
refletiram foi de fundamental importância para a formação e constituição de um
saber sobre a sociedade.
A sociologia constitui em certa medida uma resposta
intelectual às novas situações colocadas pela revolução industrial. Boa parte
de seus temas de análise e de reflexão foi retirada das novas situações, como
por exemplo, a situação da classe trabalhadora, o surgimento da cidade
industrial, as transformações tecnológicas, a organização do trabalho na
fábrica etc. É a formação de uma estrutura social muito específica – a
sociedade capitalista – que impulsiona uma reflexão sobre a sociedade, sobre
suas transformações, suas crises, seus antagonismos de classe. Não é por acaso
que a sociologia, enquanto instrumento de análise, inexistia nas relativamente
estáveis sociedades pré-capitalistas, uma vez que o ritmo e o nível das
mudanças que aí se verificavam não chegavam a colocar a sociedade como “um
problema” a ser investigado.
O surgimento da sociologia, como se pode perceber,
prende-se em parte aos abalos provocados pela revolução industrial, pelas novas
condições de existência por ela criadas. Mas uma outra circunstância
concorreria também para a sua formação. Trata-se das modificações que vinham
ocorrendo nas formas de pensamento. As transformações econômicas, que se
achavam em curso no ocidente europeu desde o século XVI, não poderiam deixar de
provocar modificações na forma de conhecer a natureza e a cultura.
A partir daquele momento, o pensamento paulatinamente
vai renunciando a uma visão sobrenatural para explicar os fatos e
substituindo-a por uma indagação racional. A aplicação da observação e da
experimentação, ou seja, do método científico para a explicação da natureza,
conhecia uma nova fase de grandes progressos. Num espaço de cento e cinqüenta
anos, ou seja, de Copérnico a Newton, a ciência passou por um notável
progresso, mudando até mesmo a localização do planeta Terra no cosmo.
O emprego sistemático da observação e da
experimentação como fonte para a exploração dos fenômenos da natureza estava
possibilitando uma grande acumulação de fatos. O estabelecimento de relações
entre os fatos ia possibilitando aos homens dessa época um conhecimento da
natureza que lhes abria possibilidade de a controlar e dominar.
O pensamento filosófico do século XVII contribuiu para
popularizar os avanços do pensamento científico. Para Francis Bacon
(1561-1626), por exemplo, a teologia deixaria de ter a forma norteadora do
pensamento. A autoridade, que exatamente constituía um dos alicerces da
teologia, deveria, em sua opinião, ceder lugar a uma dúvida metódica, a fim de
possibilitar um conhecimento objetivo da realidade. Para ele, o novo método de
conhecimento, baseado na observação e na experimentação, ampliaria
infinitamente o poder do homem e deveria ser estendido e aplicado ao estudo da
sociedade. Partindo destas idéias, chegou a propor um programa para acumular os
dados disponíveis e com eles realizar experimentos a fim de descobrir e
formular leis gerais sobre a sociedade.
O emprego sistemático da razão, do livre exame da
realidade – traço que caracterizava os pensadores do século XVII, os chamados
racionalistas –, representou um grande avanço para libertar o conhecimento do
controle teológico, da tradição, da “revelação” e, consequentemente, para a
formulação de uma nova atitude intelectual diante dos fenômenos da natureza e
da cultura.
Diga-se de passagem que o progressivo abandono da
autoridade, do dogmatismo e de uma concepção providencialista, enquanto
atitudes intelectuais para analisar a realidade, não constituía um
acontecimento circunscrito apenas ao campo científico ou filosófico. A
literatura do século XVII, por exemplo, constituía uma outra área que ia se
afastando do pensamento oficial, na medida em que se rebelava contra a criação
literária legitimada pelo poder. A obra de vários literatos dessa época
investia contra as instituições oficiais, procurando desmascarar os fundamentos
do poder político, contribuindo assim para a renovação dos costumes e hábitos
mentais dos homens da época.
Se no século XVIII os dados estatísticos voavam,
indicando uma produtividade antes desconhecida, o pensamento social deste
período também realizava seus vôos rumo a novas descobertas. A pressuposição de
que o processo histórico possui uma lógica passível de ser apreendida
constituiu um acontecimento que abria novas pistas para a investigação racional
da sociedade.
Data também dessa época a disposição de tratar a
sociedade a partir do estudo de seus grupos e não dos indivíduos isolados. Essa
orientação estava, por exemplo, nos trabalhos de Ferguson, que acrescentava que
para o estudo da sociedade era necessário evitar conjecturas e especulações. A
obra deste historiador escocês revela a influência de algumas idéias de Bacon,
como a de que é a indução, e não a dedução, que nos revela a natureza do mundo,
e a importância da observação enquanto instrumento para a obtenção do
conhecimento.
No entanto, é entre os pensadores franceses do século
XVIII que encontramos um grupo de filósofos que procurava transformar não
apenas as velhas formas de conhecimento, baseadas na tradição e na autoridade,
mas a própria sociedade. Os iluministas, enquanto ideólogos da burguesia, que
nesta época posicionavam-se de forma revolucionária, atacaram com veemência os
fundamentos da sociedade feudal, os privilégios de sua classe dominantes e as
restrições que esta impunha aos interesses econômicos e políticos burgueses.
É a intensidade do conflito entre as classes
dominantes da sociedade feudal e a burguesia revolucionária que leva os
filósofos, seus representantes intelectuais, a atacarem de forma impiedosa a
sociedade feudal e a sua estrutura de conhecimento, e a negarem abertamente a
sociedade existente.
Para proceder a uma indagação crítica da sociedade da
época, os iluministas partiram dos seus antecessores do século XVII, como Descartes,
Bacon, Hobbes e outros, reelaborando, porém, algumas de suas idéias e
procedimentos. Ao invés de utilizar a dedução, como a maioria dos pensadores do
século XVII, os iluministas insistiam numa explicação da realidade baseada no
modelo das ciências da natureza. Nesse sentido, eram influenciados mais por
Newton, com seu modelo de conhecimento baseado na observação, na experimentação
e na acumulação de dados, do que por Descartes com seu método da investigação
baseado na dedução.
Combinando o uso da razão e da observação, os
iluministas analisaram quase todos os aspectos da sociedade. Os trabalhos de
Montesquieu (1689-1755), por exemplo, estabelecem uma série de observações
sobre a população, o comércio, a religião, a moral, a família etc. O objetivo
dos iluministas, ao estudar as instituições de sua época, era demonstrar que
elas eram irracionais e injustas, que atentavam contra a natureza dos
indivíduos e, nesse sentido, impediam a liberdade do homem. Concebiam o indivíduo
como dotado de razão, possuído uma perfeição inata e destinado à liberdade do
indivíduo e à sua plena realização, elas, segundo eles, deveriam ser
eliminadas. Dessa forma reivindicavam a liberação do indivíduo de todos os
laços sociais tradicionais, tal como as corporações, a autoridade feudal, etc.
A burguesia, ao tomar o poder em 1789, investiu
decididamente contra os fundamentos da sociedade feudal, procurando construir
um Estado que assegurasse sua autonomia em face da Igreja e que protegesse e
incentivasse a empresa capitalista. Para a destruição do “ancien regime”, foram
mobilizadas as massas, especialmente os trabalhadores pobres das cidades.
Alguns meses mais tarde, elas foram “presenteadas” pela nova classe dominante
com a interdição dos seus sindicatos.
A investida da burguesia rumo ao poder, sucedeu-se uma
liquidação sistemática do velho regime. A revolução ainda não completara um ano
de existência, mas fora suficientemente intempestiva para liquidar a velha
estrutura feudal e o Estado monárquico.
O fato é que pensadores franceses da época, como
Saint-Simon, Comte, Lê Play
e alguns outros, concentrarão suas reflexões sobre a natureza e as
conseqüências da revolução. Em seus trabalhos, utilizarão expressões como
“anarquia”, “pertubação”, “crise”, “desordem”, para julgar a nova realidade
provocada pela revolução.
BIBLIOGRAFIA
MARTINS, C. B. O
que é Sociologia. 10ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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