segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Sobre a tragédia no Rio de Janeiro


por Diney Lenon de Paulo



A grande quantidade de irmãos cariocas que tiveram suas vidas destroçadas nesse início de ano, em meio ao tradicional período de chuvas acaba por levantar uma questão de suma importância. Seriam as centenas de vítimas mortas, desaparecidas e milhares de desabrigados parte de um longo processo histórico de abandono a avolumar as trágicas e sinistras estatísticas, ou seria um caso excepcional de grande repercussão e comoção nacional explorado de forma vazia pelos grandes meios de comunicação?
A resposta para essa complexa questão passa pela leitura sobre o padrão midiático que influencia o que se convencionou chamar de “opinião pública” no Brasil. Passa também pela historicização desse problema, que é um problema estritamente social, longe das questões metereológicas, naturais ou mesmo atemporais, metafísicas. Com essa perspectiva, o arcabouço sociológico servirá de parâmetro para a reflexão que se desenha sobre as causas da “tragédia carioca, versão 2011” e a forma como esta é construída junto à população através de uma enorme campanha midiática sincronizada, despolitizada e alienante.
Chega a 765 o número de mortos pelas chuvas no Rio de Janeiro, essa é a manchete de destaque num dos maiores e mais acessados portais da internet no dia 24 de janeiro, duas semanas após o início desse novo capítulo de uma “velha novela”. Alguém pode se perguntar: o que tem de mais nessa manchete? Os números? Seriam mais? Menos? Ah, se esqueceram dos 417 desaparecidos e que são mais de 22 mil novos "sem teto"! Não, não há nenhum erro gramatical, mas sim uma visão embaçada da questão. A frase atribui à chuva a causa das mortes, naturalizando uma questão estritamente política, social.
Ao sintonizar o noticiário televisivo nesses dias não há outra manchete que encontre maior destaque senão “as chuvas”. É interessante notar que geralmente os jornais televisivos abrem suas edições com longas matérias sobre a situação na região serrana carioca, dando algum destaque aos estragos ocorridos também na região do Sul de Minas, mas nada próximo da catástrofe litorânea. Eis que ao término da matéria de teor comovente, com uso exorbitante de tragédias particulares a sequência “automática” se dá pela apresentação da “previsão do tempo”. Essa seqüência tem um sentido, um objetivo claro: associar a tragédia que comove aos fenômenos climáticos. Assim não é difícil imaginar o comentário tão simplista quanto a leitura da questão: Meus Deus, coitada dessa gente, ainda vem mais chuva!



A importância das Ciências Sociais numa sociedade em que sua elite não permite o pensamento crítico é reforçada nesses momentos. Não é a chuva causadora da tragédia e sim a forma como a sociedade se permite desenvolver. É claro que as casas e vidas destroçadas estavam em locais totalmente inadequados, em morros, próximos de rios sem vazante, encostas. Levantamento da Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro conclui que cerca de 50% das casas na Região Serrana estão em áreas de risco. E qual o planejamento urbano, qual a política pública que possibilita essa situação? De pronto a resposta é certeira: nenhum!
Se em 2010 foram 283 mortes no Rio de Janeiro, 53 mortos em Alagoas e Pernambuco, em 1997 foram 82 mortos em Minas Gerais, 1979 foram 246 cidadãos mineiros e em 1967 foram mais de 400 vítimas paulistas pode-se concluir que essa tragédia irá se somar às estatísticas trágicas da ausência de políticas públicas e ordenamento do espaço urbano. Legislação existe, conhecimento científico também, mas ambos esbarram no interesse e prioridade política.
A Lei Federal nº 6766, de 1979 já evidenciava a necessidade de se promover a organização do espaço e a ocupação deste em locais providos de toda a estrutura dos serviços públicos, com capacidade de escoamento das águas pluviais, dentre outros. A lei ainda prevê  em seu terceiro artigo, parágrafo único, a proibição de parcelamento do solo:

        I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas;
      II - em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados;
     III - em terreno com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes;
    IV - em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação;
  V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.

Lei Federal de 1979 garante o uso e a ocupação racional do solo


Mesmo diante da legislação interesses mesquinhos e especulativos prevalecem e se sobrepõem aos interesses coletivos. Por falta de espaço adequado para construção de suas moradias, muitas famílias procuram lugares que o “mercado imobiliário” ainda não se apoderou e acabam por constituírem as enormes áreas de risco. Um exemplo claro dessa questão é o bairro do Morro do Bumba, em Niterói, que se construiu por sobre um lixão e que contava com mais de 50 casas e vários comércios. O solo naquela região havia perdido a capacidade de absorver a água da chuva e o resultado foi a total destruição das casas com os deslizamentos e a enchente.
Joseph Stálin, Presidente da URSS, certa vez afirmou que: a morte de milhares pode se tornar uma mera estatística e a morte de uma pessoa, muitas vezes se torna comoção nacional. No caso da Região Serrana, as duas perspectivas dadas no pensamento do líder soviético se complementam perfeitamente, pois milhares foram as vítimas, não só mortas, desaparecidas, mas que tiveram suas vidas arrasadas, com um pequeno diferencial, os ricos foram pra hotéis, outras casas, ou mesmo não estavam nas regiões de risco, já os pobres, que “pouco ou nada tinham”, paradoxalmente “perderam tudo”.



A grande imprensa insiste em apresentar a questão como um problema climático. No sítio oficial da Rede Globo de Televisão a manchete não deixa dúvidas: “maior tragédia climática da história do país”. Há ainda na página entrevista com especialistas em climatologia citando, inclusive, o fenômeno La Niña. Para não faltar a tradicional culpabilização do indivíduo há ainda entrevistas de “experts” culpando as vítimas pela sua própria desgraça de “terem escolhido” morar em morros somando a “crítica aos governos” por não retirarem essas famílias dos locais.

Toda ajuda nesse momento é bem vinda


Retrato dos abrigos

A tônica comovente serve também de anestésico da consciência e as "doações" (necessárias e urgentes, sem dúvida!) finalizam a "leitura" sobre a questão. fica nítido que estao, aos olhos e ditames midiáticos, é natural e depende agora da caridade e em nenhum momento a questão política vem à tona, como um movimento ou articulação social para a tão aclamada reforma urbana. A caridade nesse momento é um valor inestimável, contudo não se aproxima do centro do problema e de sua solução.
Há, com certeza, também, um peso considerável das questões climáticas e geográficas, como desmatamento, ocupação e urbanização de áreas de grande absorção e até aquecimento global, porém todas essas questões envolvem decisões políticas. A construção da legislação se faz pela política e a aplicação destas sobretudo. Pela grande formadora da "opinião pública" a população fica restrita às lágrimas, esmolas e esperanças.
O que não se pode continuar nesse país é tentar culpar o desgraçado pela sua desgraça e desfocar a questão central que faz dessas tragédias uma constante estatística de mortos, desabrigados e lágrimas de comoção nacional. Não basta culpar o clima, somar os mortos e alimentar os sobreviventes com sobras de guarda-roupa em galpões chamados de abrigos. Trata-se, pois, de uma questão de dignidade  nacional, ou se abrem os olhos para a raiz do problema ou 2012 a estatística crescerá e os corações se sentirão, novamente, amargurados diante das "forças maiores da vingativa natureza".

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