domingo, 28 de março de 2010

Debate conceitual acerca do Populismo


INTRODUÇÃO

Desde a década de 1930 as instituições políticas no Brasil vinham se transformando, processo decorrente de um aprofundamento da economia capitalista, numa vertente industrializante. Representa esse período uma revolução em todos os campos de leitura social. A compreensão desse processo histórico requer uma visão crítica de totalidade, onde se colocam as relações de produção num contexto de valorização da força de trabalho a nível mundial e que o Estado Nacional passa a estruturar a “colaboração” da classe trabalhadora para a sua afirmação na conjuntura internacional de disputa hegemônica.
Nesse período as correntes nacionalistas de direita ganhavam força na Europa frente ao descrédito das idéias liberais. O abalo da Crise Mundial de 1929 representou o sinal mais crítico e concreto de que outras ideologias eram necessárias. Ourtras formas de se pensar o desenvolvimento econômico das nações surgiam como alternativas mais seguras garantindo a intervenção do Estado, força legítima da Nação, no campo econômico e político.
O século XX pode ser considerado o século das “Guerras das Ideologias”. Inicia-se num contexto de grande disputa entre as nações imperialistas, vive as duas grandes guerras e uma guerra ainda maior, mais dura e longa, porém camuflada, a Guerra Fria. O impacto da Revolução de 1917 se processou de forma dialética entre o pensamento moderno e conservador europeu, gerando uma reação mais à direita, com o crescimento do fascismo e do nazismo de Benedito Mussolini e Adolf Hitler. A conjuntura favoreceu a expansão da ideologia do Estado forte, que assegurasse o desenvolvimento econômico dentro da ordem social e que através de uma propaganda de massas levasse a classe trabalhadora a um engajamento alienante na construção da pátria, na luta em defesa do governo, que se figurava como o representante da vontade política de todo o povo, de todas as classes, com um discurso voltado às classes trabalhadoras.
A formulação das idéias que se cristalizavam na Europa ainda se ligava às idéias de John Maynard Keynes, economista estadunidense que influenciou de forma considerável o pensamento econômico do século XX. Keynes teve sua teoria sobre a política de pleno emprego, com intervenção do Estado influenciando a reformulação do pensamento econômico americano pós-1929. A sua época se apresenta como um período de transformações profundas dentro de um processo de mundialização da economia, de divisão internacional do trabalho e disputa por hegemonia das nações.
A circulação de mercadorias e capital entre os países também movimenta idéias e pensamentos, estes se processam como prática em conjunturas e contextos diversos. Nesse sentido, a interpretação de fenômenos políticos, econômicos e sociais que abarcam o fenômeno do populismo latino-americano requer uma prévia contextualização histórica para o debate conceitual acerca do que venha a se definir por populismo. O que diversos autores, entre sociólogos e cientistas políticos, em sua maioria, buscam é teorizar, formular e aplicar tipologias para se analisar o populismo. O que se pretende neste ensaio é buscar apontar algumas interpretações sobre o fenômeno do populismo latino americano usando como objeto de análise, em especial, o Peronismo, populismo argentino mitificado e personificado na liderança de Juan Domingo Perón e o populismo de Getúlio Vargas no Brasil em períodos históricos próximos e com práticas semelhantes.

POPULISMO, A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO

A discussão conceitual apresentada nesse ensaio se coloca no livro de Jorge Ferreira, organizador de O populismo e sua história . O texto publicado em 2001 reúne ensaios de pesquisadores argentinos sobre o peronismo, versão populista de Juan Domingo Perón. A conceituação de populismo não é apresentada como forma perfeita e bem definida, é colocada em diversos ângulos de análise. Alguns autores definem o fenômeno como uma patologia da estrutura social, fazendo uma leitura funcionalista. Outros interpretam o fenômeno como um processo histórico de fricção política e ação consciente das massas num movimento necessário à consolidação do capitalismo, essa leitura encontra coro entre os integrantes dos Partidos Comunista Argentino e Brasileiro, que esperavam com a consolidação desse modelo encontrar espaço fértil entre as contradições inerentes ao processo para a ascensão das idéias socialistas. O sociólogo argentino Gino Germani define o populismo como uma “etapa”, assim como os marxistas, mas no seu horizonte, essa prática política encaminharia a sociedade para um regime democrático forte e desenvolvido, essa era a concepção elaborada pelos pensadores da sociologia moderna.
Os críticos do conceito dissertam sobre a imprecisão do vocábulo. Seus modelos e tipologias são apresentados como superficiais quanto às particularidades nacionais, nem especificidades conjunturais.
Mackinnon e Petrone analisam o populismo e dividem as formas de interpretação deste fenômeno em dois grupos, os generalistas e os particularistas. Os dois pesquisadores buscam regularidades para evitar extremos da “particularização” e da “universalização”. Jorge Ferreira enfatiza que Mackinnon tende sua análise para uma visão de totalidade que envolve particularidades.
Nessa discussão sobre o método a ser empregado na análise sobre o populismo, Jorge Ferreira ainda cita Alberto Círia, que faz comparações entre as diferentes experiências, indicando ser esse método, o comparativo, o mais “frutífero” de análise .
Há uma variedade de fenômenos políticos caracterizados como populistas na América Latina entre o período de 1930-70. A delimitação do período populista nos países latino americanos é assim descrita por Jorge Ferreira: Populismo brasileiro, 1930-1964, 1930-1954, 1951-1954; o Populismo mexicano, que aqui serve de ilustração apenas, não sendo inserido na discussão, 1934-1940 e o Populismo argentino de 1946-1955. Como se pode notar, a delimitação de um espaço tempo para a análise do populismo latino americano proposta por Ferreira demonstra uma facilidade maior de compreensão e síntese do populismo argentino, que compreende o governo de Juan Domingo Perón, entre 1946 a 1955.
O populismo brasileiro constitui-se em momentos diferentes dentro de uma luta de afirmação que leva alguns pensadores a situarem o populismo varguista, uns entre 1930-1954, outros entre 1951-1954, outros ainda entre 1930-1964, período esse que considera o populismo pós-Vargas.
Façamos a análise do populismo de Perón na Argentina no período que compreende 1946-55.

A ARGENTINA INDUSTRIALIZANTE

Após a Crise Mundial de 1929 a produção industrial Argentina cresceu consideravelmente. A importação de produtos industrializados caiu de 25% do que representava a Produção Nacional, em 1925-30 para 6% em 1935-46. O número de operários duplicou no período que antecedeu a conquista do poder por Juan Domingo Perón. Na Secretaria do Trabalho e Previdência, Perón acompanhou o crescimento dos sindicatos e da sua representatividade política, estimulou a organização sindical. O Estado articulava e supervisionava os sindicatos que deveriam agir como base de sustentação da política desenvolvida pelo Estado, sempre em defesa do crescimento econômico (FERREIRA, p.145).
A estrutura montada pelo Estado argentino era centralizadora e unificante. O discurso usado pelo Estado “paternalista” era o da necessidade de haver apoio por parte dos trabalhadores ao Governo, além da confiança necessária por parte daqueles. Os Planos de Bem Estar Social, como a Fundação Eva Perón, se encarregavam de manter as camadas populares empolgadas com a política populista. O autor do texto ressalta que entre 1946 e 1949 o salário real dos trabalhadores cresce 53%, assim como a subordinação do sindicato ao Estado também aumentava. Com toda essa realidade de crescimento econômico e aplicação de medidas intervencionistas do estado no sentido de se estimular a produção nacional e o impulso e crescimento da classe média, há de se convir que, segundo Jorge Ferreira, os trabalhadores tinham motivos concretos para expressarem seu apoio a Perón .
Uma questão levantada por Miguel Murmis e Juan Carlos Portantiero é a desmistificação da idéia de uma classe trabalhadora conduzida pelo populismo, sem capacidade crítica de compreender o processo em que se inseria. Murmis e Portantiero descrevem a ação das classes trabalhadoras no processo como uma forma consciente de enfrentamento das contradições, de acordo com os seus interesses. Toda essa potencialidade sindical canalizada durante o fenômeno populista se deve, segundo a análise de Ricardo Sidicaro, a um ambiente favorável proporcionado pela política peronista, de estímulo à sindicalização .
Murmis e Portantiero ainda analisam a transcrição de uma fala de Perón e a de um líder sindicalista da época de seu governo feita por Daniel James para exemplificar sua defesa de que os sindicatos haviam adquirido força autônoma e impulsionaram as distintas iniciativas de apoio e defesa ativa do governo.

Se alguns pedem a liberdade, nós também a pedimos (...) Nem tampouco a liberdade de vender o país nem de explorar o povo trabalhador.
Perón.

A gente de 45 já estava cansada. Durante anos e anos haviam enganado sua fome com canções sobre a liberdade.
Mariano Tedesco – Líder Sindical

O apoio dos trabalhadores a Perón é aqui entendido como uma opção da própria classe em função de seus interesses materiais e subjetivos. Considerar o apoio das classes trabalhadores ao peronismo, ou populismo, como forma “inocente”, ou “ilusória” é um equívoco quando considerado o processo histórico do momento que marca uma série de grandes conquistas dos trabalhadores em nível de participação política.

O POPULISMO VARGUISTA

Sempre sensível às classes populares, Getúlio Vargas buscava conduzir o processo industrializante impulsionado pelo Estado de forma que os conflitos inerentes à política de consolidação do capitalismo nacional fossem assimilados pelo Estado. Francisco Weffort, em O Populismo na Política Brasileira, ressalta o caráter autoritário do governo paternalista e carismático dos líderes das massas que sucedem Vargas no período 1945-64. O que evidencia Francisco Weffort é o fato de o populismo ser uma prática de manipulação das massas, mas a manipulação nunca foi absoluta. Esse período é marcado por uma crise da oligarquia e das organizações liberais.
A política implementada por Vargas durante as décadas de 1930-40 impulsionou o crescimento econômico do Brasil. Nessa perspectiva de crescimento, a classe trabalhadora, enquanto força essencial à produção capitalista, se coloca como peso político considerável no processo.
A prática de Getúlio Vargas se assemelha em muitos aspectos à de Perón. O controle sobre os meios de comunicação de massa, o acompanhamento e orientação das organizações sindicais, a propagação dos ideários patriotas são instrumentos que Getúlio usou para a consolidação de uma imagem que lhe rende ainda hoje a caracterização do “Pai dos Pobres”. introduziu os direitos trabalhistas e impulsionou a modernização do país, “Um governo que se isola das massas populares está nutrindo, sem saber, o germe de sua própria destruição”.

O POPULISMO ENQUANTO DISCURSO IDEOLÓGICO

A abordagem do discurso ideológico perpetuado pelos governos populistas de Perón e Getúlio será tratada a partir dos documentos que eternizaram esse período. A Carta Testamento de Evita Perón e as últimas linhas escritas por Getúlio Vargas antes de seu suicídio contêm mensagens ideológicas que possibilitam um amplo campo para investigações sobre a constituição do mito do governante escravo de seu povo, cuja profissão de fé é defender os seus descamisados.
No dia 24 de agosto de 1954, Getúlio sob forte pressão dos militares “entreguistas”, como enfatiza Alain Rouquié, se suicida e deixa uma carta testamento que servirá de documento para inúmeras produções de conhecimento sobre o período populista brasileiro Vargas era um homem letrado, conhecedor profundo de direito e teoria política, suas últimas palavras o demonstraram. O então Presidente eleito democraticamente Vargas aponta para os espoliadores do povo como inimigos da nação e que lhe pressionavam naquele momento. .
O “Pai dos Pobres” se coloca como um escravo do povo, abnegado serviçal dos desejos do povo brasileiro, sua vida só existe razão em função do seu dever de proteger os seus descamisados e amá-los. Toda a propaganda ideológica veiculada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP criou a imagem do homem que amava o seu povo, que amava os pobres e em seu último discurso não poderia ser diferente. Vargas deixou em sua Carta Testamento o documento que contém a essência do seu populismo, a imagem do “bom pai”, do líder carismático, justo e soberano que, apesar de todas as dificuldades impostas pelos inimigos da nação, promoveu o bem estar dos trabalhadores, investiu na Nação “conciliou o conflito”.
Um outro documento que serve de análise sob esse prisma é a Carta Testamento de Maria Eva Duarte, Evita, ou a “Dama de la Esperanza”, ou “La abanderada de los humildes”. Em 1945 Perón havia se casado com Evita e uma imagem havia sendo trabalhada em torno da Primeira Dama. Durante sete anos Evita foi a companheira de Juan Domingo Perón, quando contraiu um câncer e veio a falecer. O vazio afetivo criado na vida de Perón foi incorporado pela campanha ideológica de mitificação e personificação da liderança política. Em seu testamento, Evita enaltece seu amor por Perón e pelo povo argentino, um discurso político-ideológico que contribuiu em muito para a mitificação da imagem dea grande mulher que daria a sua vida pelo seu grande amor, Perón, o “homem de grandes qualidade e que ama seu povo” .

Pido a todos los obreros, a todos los humildes, a todos los descamisados, a todas las mujeres, a todos los niños e a todos los ancianos de mi pátria que lo cuiden, lo acompañen a Perón como si fuese yo misma.
Evita Perón.

O que se evidencia na abordagem sobre o populismo é uma necessidade de se considerar as especificidades históricas que envolvem distintos processos de transformação na América Latina na maior parte do século XX. A conjuntura internacional de disputas hegemônicas e a necessidade de fortalecimento das economias nacionais determinam uma série de medidas de assimilação contenção das contradições do processo modernizante. O envolvimento das massas no âmbito político não é algo orquestrado, nem ingênuo, é uma configuração de forças que movimenta a história desses países.
A conduta dos governantes do período populista demonstra habilidade política diante dos problemas que emergiam. Num contexto internacional de disputas entre as ideologias, o populismo se configura como processo histórico inserido numa totalidade composta de particularidades históricas e conjunturais. Como afirma Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política, o conceito de populismo se apresenta de forma imprecisa, ambígua, seus modelos e tipologias são “confusos e contraditórios”. Muito ainda se tem de aprofundar sobre essa questão, mas pode-se criar um espaço propício à discussão do tema considerando a historicidade do processo.

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