domingo, 28 de março de 2010

Movimentos Sociais na América Latina, Bolívia e luta antiimperialista


Introdução

Este artigo tem por objetivo fazer uma breve leitura sobre o desenvolvimento dos movimentos sociais na América Latina nos últimos anos, em especial na Bolívia, alvo de especulação midiática dos últimos dias em função da nacionalização das reservas e indústrias de hidrocarburetos.
Não se pretende aqui fazer uma análise da questão que envolve o “gás da Bolívia”, mas sim dos movimentos sociais que impulsionam o processo político daquele país e sua ligação com o movimento latino-americano de integração regional. Será tratada aqui a questão do avanço qualitativo dos movimentos sociais da América Latina, sua função dialética, de pressão sobre os governos nacionais e a disputa de interesses das camadas populares e de empresas transnacionais.
Nesse sentido, depois de delimitado o problema a ser criticado, o primeiro passo para se analisar uma realidade política é conhecer sua realidade histórica. Para tanto, as Ciências Sociais se colocam como importantes instrumentos de análise que se completam e se unem sob várias concepções de mundo, de método e de linhas de pensamento. Esse artigo se coloca como uma leitura sociológica. Os aspectos considerados serão os políticos, logicamente dentro de um processo histórico.
Nessa introdução à compreensão da realidade boliviana, dos movimentos sociais daquele país, da grande mobilização social que toma conta do continente latino-americano e do processo político de profundas transformações de nosso tempo, o foco central de leitura se aplicará à ação e organização dos movimentos sociais, o desenvolvimento de sua luta e suas conquistas no plano político.

Bolívia, no epicentro centro da América do Sul, um levante indígena antiimperialista
A Bolívia é um país que se situa no centro do Continente Sulamenricano. Um país cheio de contrastes entre a realidade social e econômica. Pode-se afirmar que há duas Bolívias, uma das empresas transnacionais, aliadas de uma elite entreguista e outra Bolívia, de uma imensa massa de indígenas despossuídos de direitos.
A riqueza produzida naquele país se compara ao Produto Interno Bruto – PIB de estados brasileiros como o Piauí, ou Ceará. Uma pequena elite, articulada em partidos conservadores se beneficia do desmonte do estado, aplica sua política “entreguista”, enquanto milhões de bolivianos padecem na miséria absoluta, índices sociais como o de mortalidade infantil se comparam a regiões tidas pela Organização das Nações Unidas – ONU, como de “catástrofe humana”, regiões como Namíbia e Quênia na África e Haiti nas América.
Por sua imensa riqueza de hidrocarburetos, sua colocação geográfica estratégica, ou seja, sua capacidade de produzir energia para o desenvolvimento das indústrias multinacionais de todo o continente, a Bolívia desperta a atenção e o interesse de muitos “poderosos”, se colocando como fonte abundante de energia.
A década de 1990 foi para a Bolívia, assim como para todos os povos da América, a década do desenvolvimento pleno do neoliberalismo. A política do “estado mínimo”, de privatizações, de entrega do patrimônio nacional às empresas transnacionais transformou radicalmente a vida de milhões de latino-americanos. Intrinsecamente ligada a esse processo, a massa de trabalhadores expulsos do mercado de trabalho, expulsos do campo, privados de direitos básicos, aglomerados nos centros urbanos a procura de trabalho, sem uma política social condizente com a realidade da população, emerge uma nova força política em todas as partes do continente, em especial na Bolívia, os movimentos sociais de caráter antiimperialista.
Um país onde 58% da população não têm acesso aos serviços de água potável e saneamento básico, onde 44% das pessoas não têm acesso a insumos energéticos, onde 38% das pessoas não têm acesso aos serviços de saúde e que a mortalidade infantil chega a 55% (55 crianças mortas antes de completarem os cinco anos de idade a cada 1000 nascidos vivos), não poderia viver uma realidade diferente do conflito político entre os interesses nacionais, populares e os interesses transnacionais. A realidade boliviana é a realidade de todo o povo latino-americano, uma realidade dúbia, de riqueza de poucos e miséria de muitos. Como conseqüência do aprofundamento da exploração do trabalho, de exclusão social, da aplicação de uma política próxima do despotismo, o processo dialético cria as condições objetivas para uma transformação radical, na mesma proporção da radicalidade capitalista em seus objetivos imperialistas.
Os primeiros anos desse século foram de intensa agitação e organização dos movimentos sociais em toda a América Latina. O neoliberalismo aprofundou as chagas do capitalismo, sua política imperialista tem gerado, como disse Marx, os “seus próprios coveiros”. Na Venezuela, o governo nacionalista de Hugo Chaves, tendo o controle da exploração de sua maior riqueza, o petróleo, tem se constituído como uma liderança regional no enfrentamento ao capital internacional, isso com amplo apoio das camadas sociais organizadas nos círculos bolivarianos em seu país e no continente.
De Caracas, de Havana, agora de La Paz, gritos de liberdade, ações de coragem têm inspirado movimentos de todo o continente. No Equador, não podemos nos esquecer, que, há pouco tempo, o Presidente Lúcio Gutierres, eleito com uma proposta progressista, foi derrubado pelas massas populares por não cumprir seus compromissos. No Uruguai, Tabaréz Vasquez, foi eleito com propostas de mudança da política, de enfrentamento do neoliberalismo e tem acenado positivamente para uma integração regional. Na Colômbia, a guerrilha luta há mais de quatro décadas contra a opressão que vem do norte e tem alcançado grandes vitórias, nesse país as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC, guerrilha marxista, controlam cerca de 40% do território nacional, construindo seu próprio sistema de governo. Na Argentina, Nestor Krischiner tem feito uma política de enfrentamento ao Fundo Monetário Internacional – FMI, à lógica neoliberal, inclusive “re-nacionalizando” os serviços saneamento de Buenos Aires. No Brasil, o governo Lula, ainda que de forma modesta, tem dado apoio a governos populares do continente, como fica claro no caso da Bolívia, quando Lula afirma que a decisão do governo boliviano é uma decisão soberana e quando coloca Chavez, em diversas ocasiões, como um companheiro.
Esse movimento tem crescido quantitativa e qualitativamente. Um Exemplo claro é o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, o Fórum Social das Américas, a luta pela “Outra América Possível e o Fórum Continental de Luta Contra a ALCA. A organização de movimentos indígenas, trabalhadores sem terra, centrais sindicais, estudantes, intelectuais, tem avançado no sentido supranacional.
Movimentos sociais se articulam regionalmente, trocam experiências, conhecem diferentes formas de organização e luta. Nos grandes encontros o número de delegados, entidades, movimentos cresce velozmente. São diversas lutas, ligadas ao trabalho, à cultura, às questões de gênero, de educação, de meio ambiente, uma infinidade de lutas que se direcionam à crítica ao imperialismo. A questão qualitativa é elemento essencial no desenvolvimento dessas lutas. Círculos Bolivarianos, associações de moradores, sindicatos têm aumentado a discussão política entre as classes populares têm envolvido mais trabalhadores na discussão, na vida e prática política, por consciência e convicção, ou mesmo por opção única frente à dura realidade decorrente da exclusão e exploração diária.
Na Bolívia, os movimentos sociais que têm grande destaque são as organizações indígenas, como o Movimento ao Socialismo – MAS; a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia – CSUTCB; Central Operária Boliviana – COB; Federação das Juntas Vecinas (associações de moradores); Coordenação de Defesa do Gás e da Água (movimentos sociais e partidos políticos nacionalistas e socialistas). Essas organizações têm tido grandes avanços nos últimos anos em sua luta pela soberania nacional e pela transformação do próprio estado.
Grandes lideranças têm despontado no cenário político boliviano, como Evo Morales, cocaleiro, líder indígena e sindical, eleito presidente no ano de 2005 com 53,7% dos votos válidos, em primeiro turno e com uma popularidade alta entre pelo menos 74% dos bolivianos. Sua história se fez num povo chamado aymará, etnia que corresponde por cerca de 25% da população do país, entre a população humilde das regiões montanhosas do país, em plantações de coca, logo Evo se tornaria grande liderança dos cocaleros de Bolívia. O grande prestígio que tem entre a população pobre do país, seu discurso abertamente antiimperialista fez com que Evo se tornasse uma figura emblemática, um deputado do Movimento Al Socialismo, com forte carisma e propostas radicais de transformação da realidade boliviana.
Felipe Quispe, da CSUTCB, também desfruta de grande popularidade e tem liderado as grandes mobilizações pela nacionalização dos recursos energéticos nesses últimos três anos. De linha mais radical, Quispe chegou a afirmar que se o governo boliviano não realizasse a nacionalização por completo das empresas transnacionais, sem indenização para as que operam ilegalmente, os trabalhadores da CSITCB realizariam manifestações de impacto até mesmo contra Evo Morales. O movimento social boliviano tem uma “organicidade” com uma cultura indígena forte, isso também contribui para o fator de identidade dos atores sociais. Tanto Quispe como Morales são indígenas e assumem sua cultura, a mesma cultura da imensa maioria de despossuídos bolivianos.
As transformações na Bolívia não podem ser compreendidas senão consideradas as grandes mobilizações populares daquele país, que nos últimos anos derrubaram dois presidentes, Gonzalo Sanches de Lozada, em outubro de 2003 e Carlos Mesa, em março de 2005. Esses presidentes, comprometidos com o programa neoliberal, efetuaram, digamos, o “leilão” da Bolívia (algo semelhante ao que FHC fez com o Brasil nos seus dois mandatos).
Gonzalo Sanches de Lozada foi afastado da presidência devido às grandes manifestações da população, em especial a de El Alto, (vizinha cidade de La Paz, marcada pela miséria e abando do estado). O povo boliviano, organizado nas centrais operárias, sob a liderança do então deputado Evo Morales, exigia a expulsão da transnacional francesa Águas de Illiami do país. Os movimentos sociais acusavam a empresa de descumprir o contrato assinado em 1997, efetuando “corte de pessoal”, má qualidade do serviço (cerca de 40 mil famílias em El Alto não têm acesso aos serviços básicos de saneamento) e aumento abusivo de tarifas.
Naquele momento, a força dos movimentos sociais aparecia de forma contundente, com o fechamento de estradas de todo o país, greve geral nos setores de saúde (o governo de Lozada retirou a estabilidade desses trabalhadores), no setor de mineração também houve paralisação total. Nos bairros, a população fechava as ruas, o transporte parou, o comércio parou, a produção parou, a Bolívia parou.
O primeiro presidente derrubado pelo povo boliviano renunciou ao seu cargo diante de intensas mobilizações populares, não resistiu à pressão da massa, deixando o país no caos social, desprestigiado até por “aliados”, se dirige a Miami, EUA, onde foi prontamente acolhido pelo governo estadunidense, fazendo jus ao tratamento que lhe era dado pelos indígenas, “gringo”. Era o início de uma nova etapa da luta dos movimentos sociais, que entraria num novo ritmo constante de conflitos e avanços no plano político. A direita boliviana tentaria se rearticular numa ampla frente de partidos conservadores, corruptos e descomprometidos com a causa nacional.
A articulação de partidos como o Movimento Nacionalista Revolucionário – MNR, o Movimento de Esquerda Revolucionário – MER e a Ação Democrática Nacionalista – ADN, mais a presença de políticos ligados a Gonzalo Sanchez de Lozada se constituiu com um objetivo comum: conter o avanço das lutas populares, organizar a reação de classe.A coalizão governamental de Carlos Mesa também buscou apoio na figura do embaixador estadunidense no país, David Greenlee, numa clara demonstração de subserviência ao imperialismo yankee. Esse grupo político se uniu em torno de um “Pacto de Unidade Nacional”.
Em resposta à magnitude da mobilização social em andamento, o governo de Carlos Mesa, que assume após renúncia de Lozada, assume com a promessa de “rever” e não romper o contrato com a empresa Águas de Illiani, mas nada faz, procura acalmar os ânimos, com promessas e amplo apoio da mídia boliviana. Esta desencadearia uma massiva campanha de “satanização” dos movimentos sociais e de suas lideranças. Os movimentos sociais, mesmo perseguidos e caluniados pelos meios de comunicação de massa, continuavam a avançar na sua luta e assustavam a elite entreguista boliviana.
Diante do impasse de Carlos Mesa, no que se refere às reivindicações dos movimentos sociais, as entidades começaram a elaborar uma pauta de reivindicações mais ampla e a pressionar pela sua aprovação por parte do governo de sua demanda. Entre as principais demandas levantadas estavam a convocatória de uma Assembléia Constituinte que fosse radical, a ponto de “refundar” a Bolívia, como afirmavam suas lideranças, inclusive Evo; A aprovação da Lei de Hidrocarburetos, com maior participação do estado e de movimentos populares na gestão da exploração do gás e de outros recursos da nação; refundação de uma empresa estatal para a exploração e administração das riquezas naturais do país, em consonância com o respeito à leis indígenas e ao meio ambiente; expulsão da empresa da cidade de El Alto Águas de Illimani, concessionária da transnacional francesa Suez; rechaço à proposta de imunidade aos soldados e cidadãos estadunidenses em solo boliviano; não negociação de acordos internacionais, como Tratado de Livre Comércio – TLC com os EUA, ou ALCA, Área de Livre Comércio das Américas até que se “refundasse” os estado; julgamento imediato de Gonzalo Sánchez de Lozada e seus apoiadores pelo massacre de 2003 e por crimes de lesa-pátria.
Mais uma vez a autoridade máxima boliviana estava sendo colocada à prova pela massa de trabalhadores indígenas, Mesa não resiste e renuncia aos seis de março de 2005, quinze meses após assumir o tão enfraquecido “poder institucional boliviano”. No lugar de Mesa, assume Eduardo Rodriguéz, que iria conduzir um momento de crise profunda do estado boliviano e de perdas estratégicas para o movimento social, principalmente para o MAS. Nas eleições distritais (municipais), o MAS alcançaria vitórias esmagadoras nas regiões mais pobres do país.
A aprovação da Lei de Hidrocarburetos e a consulta popular, através de plebiscito, foram instrumentos utilizados pelos movimentos sociais nos últimos anos. No ano de 2004, por determinação da constituição boliviana foi realizado um plebiscito nacional, onde 92% dos consultados aprovaram a nacionalização dos recursos energéticos do país. Ainda por força de lei, os movimentos sociais conseguiriam que a vontade popular manifesta nesse plebiscito se tornasse uma obrigação de qualquer que fosse o presidente que assumiria o poder em 22 de fevereiro de 2006.
Morales chegou à vitória nas eleições de 2005 com ampla margem de vantagem sobre seus adversários, com grande apoio popular e com uma expectativa de grandes transformações. Essa etapa do movimento histórico que vive a América Latina se manifesta de forma contundente na Bolívia. Os povos estão mobilizados, a Federação das Associações de Moradores da Bolívia, principalmente da região de El Alto, onde há 587 bairros, tem um poder imensurável em suas ações de bloqueios de estradas, greves gerais de setores da economia, lideranças políticas no poder, como o MAS de Evo Morales
Muitos analistas vêem na América Latina um processo histórico de grandes transformações, de desenvolvimento da consciência nacional antiimperialista e de avanços dos movimentos sociais. Sem sombra de dúvidas os movimentos sociais do continente têm assumido o papel de vanguarda na luta de classes que assume uma novo caráter histórico, de luta contra a exclusão social, contra a miséria e exploração de empresas transnacionais frente à miséria do povo. Na Bolívia, os índios têm hoje seu presidente aymará, o primeiro presidente índio em 180 anos. Esse presidente foi eleito pelas massas populares, tem popularidade a autoridade para fazer as mudanças que a Bolívia precisa. Para os povos latino-americanos, aflora a inspiração, a admiração e a luta conjunta contra o inimigo comum, a grande “ave de rapina”.
Os movimentos sociais do continente Sulamericano têm tido grandes avanços como os alcançados pelos bolivianos. Na Venezuela um processo de transformação político-social caminha a largos passos. A nacionalização das riquezas, a retomada por parte do estado do controle dos setores estratégicos de nossas economias, a reorganização dos sistemas políticos de participação e diálogo com a sociedade organizada, ou a “efetivação da democracia participativa” tem impulsionado um novo contexto político, muito mais favorável às transformações do que o vivido na década de 1990.
Por toda a América há a organização popular fazendo política e obtendo grandes conquistas, dos zapatistas no México, aos sem terra no Brasil; dos círculos bolivarianos na Venezuela, aos comitês populares de El Alto na Bolívia; dos comitês de defesa da revolução, de Cuba, aos piqueteros da Argentina; dos índios equatorianos aos camaradas da Colômbia. Vivemos um novo tempo histórico, onde a utopia não está tão longe como tentam nos fazer acreditar os pessimistas do “eterno recomeçar”. Na Bolívia o que se processa nesse momento é uma ruptura, ainda não radical, mas nesse sentido, com a lógica do mercado, portanto com os interesses imperialistas dos Estados Unidos.
Os movimentos sociais assumem a posição que mais se aproxima da posição revolucionária. Os tradicionais partidos de esquerda enfrentam crises de identidades e de práxis. Presos a concepções teóricas doutrinárias, muitas vezes perdem o trem da história. Há no continente diversos partidos políticos ditos “comunistas” compondo governos liberais, em nome de uma “condição estratégica”, enquanto os movimentos sociais estão derrubando presidentes, questionando a ordem, o próprio estado burguês.
Em todo o continente, o que se projeta é o avanço da luta popular, mesmo com a política reacionária da direita. Na Bolívia o passo fundamental foi dado, na Venezuela o processo está ainda mais avançado, a Colômbia resiste, no Brasil os camponeses avançam, os movimentos sociais são, no momento, a única força capaz de conter o neoliberalismo e propor uma nova sociedade, um “outro mundo possível”, porém a luta é constante, dialética e o caminho é repleto de espinhos, mas como diria o poeta: o passo só cansa quando não alcança a rebeldia. Diante do quadro desenhado, não resta àqueles que desejam um mundo mais justo, uma América verdadeiramente nossa, onde todos tenha dignidade, só resta exaltar a rebeldia, viva a Bolívia rebelde, o Movimento Al Socialismo, viva a força indestrutível dos trabalhadores. Viva nuestra América!

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